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O racismo recreativo e o humor desgraçado

Usar de um show humorístico, de uma performance artística, para disseminar preconceito, humilhação e desprezo, é ofender, antes de tudo, a própria arte, transformar nosso diferencial humano numa verdadeira “des”graça


Pode um artista cometer crimes com sua arte?


A arte, numa conceituação simplista, pode ser entendida como qualquer veículo da criatividade humana para expressar ideias, percepções e emoções sobre fantasias ou acontecimentos reais.


Ela nos difere como raça humana e nos dá sentido. Traz cor, sabor, textura e perfume à nossa vida. Por isso, tendemos a encará-la como algo presumivelmente bom.


Mas nem sempre é assim.


Tratando-se de veículo da criatividade humana, ela pode ser tão ruim e maléfica como podem ser os homens.


Sim, um artista pode, definitivamente, cometer crimes com sua arte!


Também um médico pode cometer crimes exercendo seu ofício, assim como o policial, o juiz, o político, o atleta… Onde há atividade humana, há ambiência para ações contrárias ao Direito; até mesmo, criminosas.


Um serial killer, “colecionador de ossos” (seja de judeus, negros ou adolescentes virgens), é capaz de criar esculturas complexas e intrigantes com seus “troféus”. Que trazem em si apologia ao crime, vilipêndio a cadáveres e ofensa profunda aos sentimentos de boa parte da sociedade (em especial, claro, dos parentes de suas vítimas).


Como toda atividade humana, também a exteriorização feita pelo artista encontra limites no Direito, cujo objetivo é promover a ordem social, a justiça e o tratamento equânime entre os indivíduos. Em nome desses valores maiores, não existe direito individual absoluto, nem mesmo à vida.


Não é difícil perceber que a arte pode ser usada da forma mais covarde, torpe e sub-reptícia imaginável para o fim de disseminar o ódio e provocar danos a pessoas determinadas ou determináveis.


Pelo poder que tem de se descolar da realidade, a arte do criminoso segue sempre procurando se agarrar às barras da impunidade. Esse tipo de “artista” se esconde em licenças poéticas, vitimiza-se por “censura” e traveste-se de palhaço para servir de instrumento de discriminação, humilhação e ódio. O criminoso, dublê de artista (ou vice-versa), pretende-se intocável.


No caso do humor, existe um complicador. Trata-se de espécie de manifestação artística que convive com a sátira, com o deboche. Em consequência, traz inerente e ampliado o potencial de ofensa e de fomento ao ódio. Mas os que o praticam, nem por isso devem ficar imunes à responsabilização e muito menos podem se autoconceder carta branca para delinquir. Ao contrário. O ofício escolhido, dadas suas peculiaridades, exige redobrado cuidado e rigor, assim como um neurocirurgião ou um piloto de caça aérea. A periculosidade inerente ao ofício escolhido não equivale à permissão para leviandade ou irresponsabilidade; é justamente o contrário.


Não por acaso, em tempos de neofascismo, o humor ácido, a “lacração” difamatória, são eleitos métodos eficazes para disseminar a segregação, a discriminação, a humilhação e o ódio, próprios à ideologia extremista e segregacionista. Sob o escudo do discurso hipócrita e falso-moralista de defesa da família, da pátria e da religião, o neofacista propaga em verdade a ridicularização ao diferente, o subjugo ao mais fraco, o extermínio do vulnerável. As minorias criteriosamente eleitas são transformadas – nessa ideologia eugênica e criminógena – nos inimigos a serem batidos.


O jurista Adilson Moreira cunhou a expressão “racismo recreativo” (livro homônimo, ed. Pólen Livros, 2019), em que aponta o humor racista como um tipo de discurso de ódio, método que delimita e destaca as minorias a serem desprezadas. Sua obra merece ser estudada, assim como a decisão paradigmática da Juíza Federal Bárbara Iseppe, que recentemente responsabilizou criminalmente um humorista por crimes de preconceito, humilhação e ódio.


Usar de um show de humor, de uma performance artística, para disseminar preconceito, humilhação e desprezo, é ofender, antes de tudo, a própria arte; transformar nosso diferencial humano numa verdadeira “des”graça, em que as diferenças são desrespeitadas e os “diferentes” (de quem?) são punidos.


Se for para punir alguém, em nome da boa arte, que se punam os desgraçados!


Paulo Calmon Nogueira da Gama – Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da AJD

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