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Anistia: 46 anos de uma lei de interpretação ardilosa

Cansadas da mordaça, as vozes, antes silentes, foram à luta. O grito da Nação foi mais forte, a ditadura cedeu.

Em 28 de agosto de 1979, a lei 6683 foi promulgada.

Não era a anistia ampla, geral e irrestrita que a sociedade civil queria, mas foi a que trouxe de volta os nossos irmãos brasileiros banidos da pátria.

Uma lei aprovada em condições precárias, pela óbvia razão de que uma das partes tinha os fuzis e a outra estava sob suas miras; quando o Congresso era composto por senadores “biônicos”; as tesouras da censura continuavam afiadas, bombas armadas em quartéis e colocadas até em bancas de jornais mantinham o clima de terrorismo.

A lei da Anistia obrigou a União à reparação a todos que foram prejudicados profissionalmente. Contudo, não diferenciou o sofrimento daqueles que, independentemente do prejuízo profissional, sofreram as arbitrariedades do regime. A lei não indeniza pelos tempos de prisão, tortura, humilhação, sevícia e sequelas, mas, unicamente pelo dano profissional.

Com a súmula 647 do STJ de 12/3/21 ficou estabelecido que os crimes cometidos pela ditadura são imprescritíveis.

O Estado ditatorial sequestrou, aprisionou, estuprou, torturou, julgou, condenou, baniu, matou e desapareceu com os brasileiros que se insurgiam – era o terrorismo de Estado.

É imprescindível ir além do drama humanitário das vítimas.

Bolsonaro, um terrorista confesso, que ostentou sua expertise na construção de artefatos explosivos – detalhando técnicas de bombas-relógio – agora ousa pedir por anistia.

Este mesmo facínora que integrou células terroristas da linha dura, que homenageou um dos planejadores do atentado ao Riocentro com uma coroa de flores, escrito “Em nome da democracia”; que enalteceu o golpe de 1964 como “revolução”, agora busca refúgio na mesma legislação que pretendeu silenciar os crimes da ditadura.

Pleitear anistia para seus crimes é um escarno na história das vítimas da tortura.

Foi com a lei da anistia da ditadura, que iniciou o descaminho para a aplicação da justiça de transição. Ela necessita ser reinterpretada!

Não acolhemos o argumento de que houve um pacto. não demos procuração a ninguém; é uma lei produto de uma conjuntura, na qual a ditadura ainda vigia, as baionetas ainda engatilhadas.

A corruptela sobre o conceito de crimes conexos é um atentado ao saber de todo estudante de direito. Não há conexão entre a vítima e o criminoso.

Ademais não estariam recepcionados pela Constituição, que considera a tortura um crime imprescritível? Mesmo que admitisse tal anomalia, encontraríamos o 2º parágrafo (Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal).

Ora, se é recíproca, os agentes da ditadura cometeram sequestro, terrorismo e atentado pessoal. Não foram condenados porque não foram julgados, mas as provas são irrefutáveis.

Manter a caduca interpretação da Lei da Anistia é eternizar o país escravo daquela conjuntura.

Advogamos pela criação de uma Comissão Estatal Permanente de Memória, Reparação e Reformas, que abranja todos os períodos traumáticos do Brasil – escravidão, ditaduras e o genocídio bolsonarista.

Em nítido contraste com a anistia de reparação histórica, os delírios bolsonaristas pregam uma anistia preventiva de extinção da memória, um perdão antecipado para seus próprios atos criminosos.

Anistia não é ferramenta de apagamento!

A anistia de 1979 foi o início do reconhecimento das arbitrariedades cometidas aos opositores do regime.

Não foi para perdoar e esquecer, pelo contrário, foi para rememorar sempre.

As gerações posteriores são as garantidoras futuras da democracia, conhecer bem aquele passado é delegar aos filhos e netos a continuidade da memória.

A Comissão de Anistia finalizou 97% das 80.357 solicitações recebidas. Essa corrida à toque de caixa foi ordem do governo que não quer remoer o passado.

A ordem foi para encerrar as atividades da Comissão em 2026.

Para tanto, arbitrariamente, limitaram as prestações mensais de reparação a R$2.000,00, tiveram que burlar o artigo 8º das Disposições Transitórias da Constituição.

Além da infração explícita à Constituição, tais decisões foram justificadas como benéficas.

É um sofisma, um esbulho! Vítimas idosas, após décadas de espera, são cruelmente submetidas a aceitar migalhas imediatas ou lutar na Justiça por dois a três anos, sem garantia de sobreviver.

A estratégia do governo é encerrar todos os processos até 2026, independentemente da qualidade das análises, mesmo que ao arrepio da lei. Trata-se de um esforço para “virar a página” da ditadura sem resolver suas feridas.

Será que somos um estorvo para Lula? Ou teve que novamente ceder ao militares?

A atrofia da Comissão reflete um projeto de apagamento histórico. Ao negar reparações consoantes as leis, o Estado falha com as vítimas.

As atuais Comissões, Anistia e CEMDP, sendo órgãos de Estado são autônomas, não deveriam estar subordinadas ao governo.

Sem recursos, essas Comissões vão à cata, de pires na mãos, das emendas de parlamentares.

Memória é bússola!

Ousar lutar, ousar vencer, sempre!

Autor: Francisco Celso Calmon

Editora: Jade Silveira

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Francisco Celso Calmon

Francisco Celso Calmon, Analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral – E o PT com isso?, Combates Pela Democracia, 60 anos do golpe: gerações em luta, Memórias e fantasias de um combatente; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula. Coordenador do canal Pororoca e um dos organizadores da RBMVJ.

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