Vale tudo?
As mídias e redes sociais repercutiram forte e fartamente a afirmação do secretário da Receita Federal de que o vídeo viral produzido no início do ano contendo fake news contra o PIX ajudou esquemas do crime organizado
A recente megaoperação “Carbono Oculto”, realizada por força-tarefa multi-institucional (envolvendo mais de mil agentes dos ministérios públicos estaduais e federal, das polícias federal, militares e estaduais), descortinou o óbvio: a criminalidade organizada, incluído o narcotráfico, utiliza-se de mecanismos e instituições do sistema financeiro, os quais são mantidos blindados pela atuação emparceirada de líderes ou influencers políticos e religiosos.
Esses influenciadores-cúmplices, ao que se constata, são experts em manipulação da opinião pública, hábeis comunicadores, usuários essenciais das big techs (que lucram muito com essa utilização).
A irresponsabilidade jurídica nas/das redes sociais é o que os atrai. Usam o mote “liberdade de expressão” como senha falsária.
Em ambiente de vale-tudo, a horda de fanáticos é formatada e manipulada por esses influenciadores trapaceiros, cuja verdadeira ideologia recôndita é a veneração ao dinheiro fácil, mesmo que sujo. Atividade sem risco, já que o faroeste das mídias sociais os mantém praticamente blindados do ônus de ressarcimento pelos danos que invariavelmente provocam ou de qualquer outra forma de responsabilização eficaz. Ao menos, a princípio.
O método comunicativo dominado pelos líderes-cúmplices, que se dizem “cidadãos de bem”, traz o seguinte modus operandi: semear o medo, emoldurar “inimigos”, fomentar o ódio e direcionar a reação. Tudo para capturar as mentes e os corações dos incautos. A tática diversionista permite que pratiquem toda sorte de ilícitos por debaixo dos panos sem que sejam questionados.
Esses delinquentes atuam em rede. Utilizam difusas fontes replicadoras de seus posts, cards, teorias conspiratórias, mentiras e ficções muito mais sedutoras que a realidade maçante. As famosas fake news.
Mas encobertos, dotados do faro de gambás, eles se mantêm ombreados e acumpliciados com a criminalidade organizada. Instrumentalizam igrejas e empresas de fachada e se infiltram na política, num esquema de permanente retroalimentação.
Ocorre que às vezes, confiando na impunidade plena, passam do ponto e invadem área tutelada pelo Direito Penal, em que as lacunas da bisonha regulação midiática atual nem sempre os protegem.
Segue em pleno vigor a boa e velha norma de extensão subjetiva sobre concurso de agentes, insculpida no artigo 29 do Código Penal: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Ou seja, há arcabouço jurídico-penal para se chegar ao braço midiático do crime organizado.
No dia seguinte à Operação Carbono Oculto, as mídias e redes sociais repercutiram forte e fartamente a afirmação do secretário da Receita Federal de que o vídeo viral produzido no início do ano por um parlamentar contendo fake news contra o PIX ajudou esquemas do crime organizado. Naquela ocasião, o movimento nas redes criou desestabilização à Instrução Normativa da Receita que se destinava a fiscalizar movimentações financeiras das fintechs, mantendo-as infensas à fiscalização eficaz. Em alinhamento a essa afirmação, resgataram-se notícias que, de um modo ou outro, convergem ao esquema desnudado pela força-tarefa: o mesmo deputado e seu pai seriam líderes de uma igreja evangélica envolvida com fintech, ele teria apoiado a venda da BR Distribuidora pelo governo passado, assim como a lei que permitiu a venda direta de etanol (a Operação Carbono Oculto desmantelou esquema de distribuição e varejo de combustíveis, em especial envolvendo etanol). Não bastasse, esse mesmo parlamentar teve um primo recentemente preso, envolvido com a apreensão de 30 quilos de entorpecentes.
Pela régua dos influencers, dos desinformadores das mídias sociais, seguindo a metodologia própria à extrema-direita neofascista, essa quantidade de informações agrupadas já seria mais que suficiente para detratar, julgar, condenar, expulsar e até excomungar qualquer pessoa.
Pimenta nos olhos do outro…
Felizmente para esse parlamentar, a régua da Justiça penal é outra. Toda acusação deve ser precedida de criteriosa investigação e, para gerar responsabilização penal, há de se submeter ao devido processo legal, assegurada a ampla defesa.
Não, não vale tudo.
Paulo Calmon Nogueira da Gama – Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da AJD