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A BAIXEZA MORAL DO OCIDENTE: GENOCÍDIO, NOBEL DA PAZ E O ELOGIO À BARBÁRIE

Observação inicial: Gostaria de elucidar que não devemos confundir o judaísmo com o sionismo, da mesma forma que não se pode confundir ser alemão com o nazismo, ser italiano com o fascismo, ser espanhol com o franquismo, ser português com o salazarismo ou ser brasileiro com o bolsonarismo. Criticar o sionismo e as ações do Estado israelense não é uma posição contra os judeus, nem mesmo contra os cidadãos daquele país. Pessoalmente tenho uma filha e uma neta judias e, com certeza, nada tenho contra os judeus. Mas, com absoluta certeza, tenho tudo contra todos os tipos de ideologias supremacistas e racistas, como são os fascismos (e neofascismos) e a sua família ideológica, na qual incluo o nazismo e o sionismo.

Ontem, dia 11 de outubro, enquanto assistia no Youtube à entrevista de Ualid Rabah, Presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL), dada para Andrea Trus na TV 247, refletia sobre os últimos acontecimentos no cenário geopolítico. Plano Trump para Gaza e o acordo de cessar-fogo; Israel mantendo alguns bombardeios e matando palestinos, mais uma vez descumprindo acordos; início da troca de prisioneiros marcada para os dias seguintes; Trump voltando a ameaçar a China com sobretaxa de 100% sobre os produtos chineses; navios de guerra dos Estados Unidos na costa da Venezuela. No meio disso tudo, dois dias antes fomos surpreendidos com a escolha de María Corina Machado para o Prêmio Nobel da Paz.

Hoje, domingo, pouco antes de terminar a escrita deste artigo, dirigia meu carro e escutava uma entrevista na rádio pública portuguesa Antena 1 com um escritor que está lançando um livro chamado O enigma de Israel, ou algo assim.  Lá pelas tantas o entrevistado, não interessa o nome, veio com pérolas como “não significa gostar de Netanyahu, mas ele e o seu governo são os últimos responsáveis pela situação atual em Gaza, estava tudo em paz na região até o massacre do 7 de outubro de 2023”, continuou com sua “profunda” reflexão dizendo “Israel é a única democracia existente em um enorme território entre a Europa e o Japão”. De cara percebi que se tratava de um perfeito idiota e preferi escutar música.

Desenvolvendo a fala de Ualid Rabah na TV 247, podemos ver que existe um longo histórico que construiu a hegemonia do Ocidente no mundo e que busca enaltecer a pretensa superioridade dos valores ocidentais. Mas também não podemos esquecer das reflexões de Walter Benjamin sobre a noção destrutiva do progresso na reprodução da barbárie pela modernidade ocidental, desde o seu nascimento. A promessa revolucionária de emancipação e luzes construiu valores que não deixaram de conviver com o seu contrário. Não podemos esquecer que o genocídio é ocidental, as bombas de Hiroshima e Nagasaki são ocidentais, o genocídio no antigo Congo Belga é ocidental, a escravidão moderna é ocidental, o genocídio dos povos originários das Américas é ocidental, o Apartheid na África do Sul é ocidental, Auschwitz e a barbárie do genocídio de euro-judeus é ocidental, o colonialismo e o imperialismo são ocidentais, a origem dos fascismos é ocidental, o necrocapitalismo é ocidental, a Inquisição é ocidental, Mussolini, Hitler, Franco, Salazar, Pinochet, Médici, Videla, Trump, Bolsonaro, Milei, Netanyahu são ocidentais, o fundamentalismo cristão é ocidental. Enfim, a lista de selvagerias, horrores e barbáries nascidas e desenvolvidas nas sociedades ocidentais é quase infinita.

Muitos podem dizer: mas e em outras partes do mundo, fora do eixo do Ocidente Coletivo Ampliado (Europa Ocidental, Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália), não ocorreram ou ocorrem violências, violações de direitos humanos, massacres, genocídios?

Sim, é verdade, mas o que eu estou questionando, neste momento da mais profunda decadência econômica, política, cultural e moral ocidental, é exatamente a soberba, a pretensão supremacista de superioridade do Ocidente em relação aos outros povos do mundo.

Mas o que esperar de sociedades que se desenvolveram e enriqueceram às custas da espoliação de todos os povos do planeta? Que implementou um projeto de existência que destrói o meio ambiente e coloca em risco a própria existência da vida? Que foi responsável pela colonização e escravização de outros povos, considerados inferiores? Onde a economia mais rica do mundo é incapaz de garantir o mínimo de bem-estar para seus cidadãos, onde milhares de pessoas perambulam como zumbis pelas ruas das cidades estadunidenses, vidas destroçadas pelo fentanil e outras substâncias? Ou acha que é muito normal assistirmos diariamente um genocídio, ao vivo e em cores, com imagens do inferno na Terra, de terror absoluto, com crianças mutiladas, corpos destroçados, mulheres e homens despedaçados, animais comendo restos humanos, selvageria perpetrada com altas doses de sadismo e perversidade pelas forças sionistas com a bênção do Ocidente – agora relativamente constrangido – e o silêncio vergonhoso e ultrajante da grande mídia hegemônica ocidental.

Alguém imagina as imagens de Auschwitz e outros campos de extermínio nazistas sendo transmitidas em tempo real e em cores para todo o mundo? Qual seria o seu impacto? O terror nazista que massacrou os judeus europeus e outros povos e grupos étnicos e religiosos (os povos ciganos, eslavos, testemunhas de Jeová) só foi revelado com a libertação dos campos e a derrota militar da experiência nazifascista. Hoje o mundo assiste imagens semelhantes em direto e não se consegue dar um basta na barbárie.

Onde está a tão propalada superioridade moral da civilização ocidental? Na democracia liberal? Na ideia de direitos humanos universais? Nas promessas de igualdade, liberdade e fraternidade?

Ok, poderia ser, mas os princípios humanistas ou valores emancipatórios não são monopólio do Ocidente. O próprio iluminismo ocidental não foi uma experiência uniforme e monolítica. Existiram diferentes iluminismos em disputa, como podemos ver no pensamento de autores como Spinoza em contraste com as reflexões de Locke, Montesquieu, Rousseau (este talvez um pouco menos) etc. Nem tudo o que o iluminismo e o projeto moderno propôs foi emancipatório. Sempre existiu uma intensa disputa política e ideológica no campo do iluminismo.

O projeto ocidental vive a sua agonia e há muito tempo abdicou dos seus próprios valores civilizacionais de emancipação humana. O Ocidente, em prejuízo para os seus próprios povos, desistiu e deu as costas para noções como democracia, soberania dos povos, igualdade, direitos humanos, direitos dos povos, participação política e liberdade. Na verdade, liberdade seria apenas a de mercado, o livre fluxo de capitais e mercadorias para a acumulação ampliada do capital e uma concentração da riqueza nunca vista anteriormente na história da humanidade.

O Ocidente vive o seu ocaso e agonizando ameaça e violenta todos os povos do mundo, a começar pelos seus próprios.

A concessão do Prêmio Nobel da Paz de 2025, por parte do comitê do Parlamento da Noruega, para a venezuelana María Corina Machado é um escárnio, possivelmente pior do que a concessão feita em 1973 para o “senhor da guerra” Henry Kissinger que, pelo menos, esteve envolvido nas negociações de paz em Paris com os norte-vietnamitas para dar fim à presença de tropas estadunidenses no Vietnam. Sobre o Nobel da Paz de 1973 é importante registrar que o comitê do Nobel indicou Kissinger e Le Duc Tho, do Vietnam do Norte. O representante vietnamita imediatamente rejeitou ser laureado com o Nobel em conjunto com o representante do país invasor.

Vivemos tempos distópicos de zoações e zombarias, onde o humor se confunde com o poder de humilhação e violação daqueles que são diferentes, onde os novos fascismos se desenvolvem como ervas daninhas pelo mundo afora e são absorvidos por grandes contingentes humanos como parte da natureza das coisas em uma espécie de catarse coletiva destrutiva, canalizando as frustrações, medos, ódios e inseguranças para as ações políticas através da liberação sem limites das pulsões de morte que se expressam em manifestações individuais e coletivas de intolerância, aporofobia, racismo, misoginia e violência.

Os tempos sombrios distópicos promovem o elogio à barbárie e uma grande festa de horrores, onde é celebrada a morte, a dor, o sofrimento como o valor supremo.

Uma verdadeira premiação relacionada com a Paz, com os valores democráticos da emancipação humana e com os direitos humanos – como deveria ser o Nobel da Paz – teria outros destinatários mais dignos. Podemos listar algumas dessas pessoas ou instituições: Greta Thunberg, Francesca Albanese, o nosso Presidente Lula, o Padre Julio Lancelotti e muitas outras pessoas ou instituições. Neste momento em que assistimos um genocídio dizimando todo um povo, por que não premiar a Flotilha Global Sumud? Ou por que não os e as profissionais de saúde palestinos e palestinas ou de outras nacionalidades, que estão em Gaza sendo alvos da barbárie nazi-sionista?

As maiores condecorações do regime nazista foram a “Ordem de Sangue” (Blutorden) e a Cruz de Ferro. Será que o Nobel da Paz está se tornando uma premiação pela guerra, pelo ódio e pelo fascismo? Esperemos por 2026, quem sabe não teremos novos condecorados ilustres como Trump e Netanyahu?

Há cerca de dez anos o filósofo Achille Mbembe escreveu um artigo onde anunciava o fim do humanismo. Eu cheguei a escrever um artigo onde associava a afirmação de Mbembe aos textos de Norberto Bobbio que décadas antes dizia que vivíamos a “era dos direitos”. Pois parece que estamos transitando do momento de esperança por um mundo de direitos humanos, de paz, bem-estar social e emancipação para o terrível momento do medo, da dor, das incertezas e da distopia generalizada.

Voltando ao Nobel da Paz de 2025, para quem não conhece a agraciada, María Corina Machado é herdeira de uma das famílias mais ricas das oligarquias venezuelanas. Embora seja apresentada pela mídia ocidental como uma lutadora da democracia, na verdade é uma legítima representante das elites mais conservadoras do seu país, é de extrema-direita, defensora da austeridade neoliberal e da privatização da PDVSA, estatal do petróleo. Com financiamento dos Estados Unidos foi articuladora da desestabilização e do golpe que depôs e prendeu por dois dias o Presidente Hugo Chávez, em 2002. O fracasso do golpe não a impediu de continuar sendo uma das lideranças mais importantes do golpismo contra os governos bolivarianos, inclusive articulando ações violentas por parte de grupos paramilitares de extrema-direita, resultando na morte de muitos inocentes. Desde 2015 pede sanções internacionais contra a economia do seu país. Também tem pedido a intervenção militar dos Estados Unidos para a derrubada do regime bolivariano. Ou seja, a agraciada como lutadora pela Paz é uma fascista ultraconservadora, belicista, que conspira com uma potência estrangeira contra o seu próprio país.

Corina é signatária da “Carta de Madrid”, a “Internacional neofascista”, juntamente com Santiago Abascal do Vox da Espanha, André Ventura do Chega de Portugal, Marine Le Pen, Eduardo Bolsonaro, Steve Bannon, Javier Milei, José Antonio Kast, Giorgia Meloni etc, a fina flor da barbárie. Além de fascista, belicista e truculenta, apoia o genocídio do povo palestino e se alinha com Trump e Netanyahu. Para o ditador sionista chegou a pedir que a ajudasse a liquidar o Presidente Maduro e derrubar o seu governo.

A premiação de María Corina Machado não foi uma premiação, foi uma decisão política com as digitais da CIA, uma ameaça direta não apenas ao governo e povo da Venezuela, mas para todos os países e povos latino-americanos. Foi uma decisão política do imperialismo e expressão da decadência do Ocidente em agonia, revelando mais uma vez a sua baixeza moral e ardente encantamento pelo fascismo e a barbárie.

João Ricardo Dornelles – Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz; Analista Político do Canal Iaras e Pagus/Youtube.

Vila Nova de Gaia, Portugal, 12 de outubro de 2025.

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João Ricardo Dornelles

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz; Analista Político do Canal Iaras e Pagus/Youtube.

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