Carta para Merz: tua xenofobia é o novo muro de Berlim
(Fonte: UOL.)
Herr Friedrich Merz,
Passei quinze anos de minha vida num colégio alemão. Cresci com as histórias de como um país humilhado reconstruiu sua democracia, como lidou diariamente com um trauma e construiu uma nova geração, como se comprometeu com valores humanistas. Meus anos de formação foram acompanhados por Habermas e seu espírito cosmopolita, pela busca de Parsifal, pelas cores de Otto Dix, pelas palavras de Brecht e pelas melodias de Orff.
Conheci também como centenas de famílias alemãs resistiram e imigraram ao Brasil para re-existir como seres humanos.
Mas, nesta semana, quando ouvi sua fala sobre a recente viagem para Belém, parecia soar num coro distante e desafinado as arrogantes palavras de superioridade.
Sem dúvida alguma temos o direito de gostar ou não de um lugar, de preferir nossa casa, de nos sentir aliviados por viver numa realidade e não em outra. Mas, quando o senhor se referiu à cidade de Belém em um discurso no Parlamento, não falava em nome pessoal. Ali, era o chefe de um governo que se exprimia.
Não é a primeira vez que o senhor flerta com uma posição xenófoba. Sua decisão de recorrer à extrema direita para passar uma lei contra imigrantes revelou que o senhor estava disposto a dar as mãos aos herdeiros de um movimento político nefasto.
Mais recentemente, o senhor sugeriu que imigrantes e estupradores se confundem no imaginário popular. Questionado se desejava rever ou se desculpar por suas declarações intransigentes sobre imigração feitas uma semana antes, o senhor respondeu:
“Não sei se você tem filhos, e filhas entre eles. Pergunte às suas filhas, suspeito que você receberá uma resposta bastante clara e inequívoca. Não tenho nada a retirar; pelo contrário, enfatizo: temos que mudar alguma coisa.”
O senhor também causou calafrios quando sugeriu que a diversidade era um problema nas cidades alemãs. “É claro que ainda temos esse problema na paisagem urbana, e é por isso que o ministro federal do Interior está trabalhando para viabilizar e realizar expulsões em larga escala”, disse.
Diante desse posicionamento, entendo que o senhor se sinta aliviado por não viver num local com esgoto a céu aberto, onde a pobreza é a realidade.
Mas não haverá alívio nem para o senhor e nem para ninguém enquanto o desenvolvimento não chegar a todos. Não haverá alívio no alto da torre de marfim construída pela eficiência de um povo enquanto milhões permanecerem fora do conceito de humanidade.
Num mundo onde a fortuna dos mais ricos seria suficiente para acabar com a pobreza no planeta e a fome, tua volta para casa deveria ser marcada pela conscientização de que só mesmo uma ação contundente e global pode ser a resposta ao desafio existencial que o século 21 nos reserva. Aparentemente, não foi o caso.
Mas o senhor não estava sozinho. Vi consternado como a realeza europeia percorreu o Brasil nesses últimos dias, abraçando crianças, ensaiando um português e se comprometendo com o clima. A hipocrisia em seu estado mais puro parece ter impedido que esses príncipes e princesas tivessem tido a coragem de reconhecer o papel que suas coroas desempenharam em saquear, explorar e escravizar uma parte da humanidade.
Mefistófeles já havia alertado ao medíocre doutor Fausto como é sedutor imaginar que somos completos como seres humanos. Como se não precisássemos de mais nada, por sermos a totalidade da raça humana. Um alerta do risco de nos fecharmos e ignorarmos a necessidade de responder ao mundo que nos rodeia.
O mesmo Mefistófeles provocador ainda desafiou a suposta virtude do protagonista de pouca cultura e repleto de truques baratos ao questionar. “Homem santo! Imagem de um santo! Será que este é o único caso em sua vida em que você prestou falso testemunho?”
No centro dos problemas internacionais hoje está a desigualdade, essa linha opressora que insiste em moldar o mundo. Sim, uma enorme responsabilidade recai em nossos próprios políticos e em nossa sociedade. Mas considerar isso apenas como um problema dos outros é querer, cinicamente, isentar a Europa de qualquer papel na construção da tragédia internacional ao longo dos séculos.
Sua resposta, porém, foi recorrer à xenofobia. O senhor revelou o que talvez seja uma nova tradução para o conceito Mauer zum Kopf (Muro mental), desta vez num sentido da busca por encastelar-se contra os outros.
A deportação como o senhor promete ou a construção de muros não serão suficientes para que o alívio que o senhor afirmou sentir seja sustentável.
Entendo que, num momento marcado pelas incertezas, guerras, pandemias, desinformação e transformações tecnológicas, o muro cumpra a mitologia de uma suposta estabilidade. Traz Disciplina. Parece ser a vitória da engenharia e suas certezas matemáticas contra o caos da vida humana.
Mas ao cruzar dezenas de fronteiras ao longo dos últimos 20 anos, eu cheguei à constatação de que muros são atos populistas, em grande parte bradados por charlatães.
Se oficialmente são erguidos contra bárbaros, imigrantes, terroristas, drogas e armas, o que eu reparei é que são, acima de tudo, construídos contra o diferente.
Quanto mais altos, mais eles desnudam, naquelas sombras, os medos mais secretos daquela sociedade. O muro é, essencialmente, um reconhecimento das vulnerabilidades, incoerências e injustiças.
Em todos os lugares onde o muro exista ou onde palavras como as que o senhor disse sejam pronunciadas, a sombra que se produz é feita sempre da mesma escuridão: a intolerância.
Mit besten Grüßen,
Jamil Chade
