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O IOF e a retórica dos “especialistas”, por Paulo Calmon Nogueira da Gama

Todo tributo tem objetivo imediato arrecadatório, é óbvio. E pode ter função reguladora, em maior ou menor grau. Sua finalidade, sempre, é atender ao interesse público. 

Em decisão incomum, o STF suspendeu liminarmente o decreto do Presidente da República que recalibrava algumas alíquotas de IOF e os decretos legislativos que o invalidavam, sinalizando a possibilidade de “desvio de finalidade” da norma presidencial. 

Segundo o Texto Constitucional, um dos “objetivos fundamentais” da nossa República é erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CR/88, artigo 3º, inciso III). 

Quando o Constituinte qualificou de “fundamental” esse “objetivo”, em verdade alçou-o ao status de “propósito”, de “finalidade”.  Do ponto de vista semântico, “objetivo” é um termo comumente utilizado para se referir a resultados mais específicos, ao passo que “finalidade” é vinculado ao propósito maior, mais geral e abstrato.

Nessa linha, é trivial entre os estudiosos do Direito Administrativo conceituar que a “finalidade” dos atos e ações dos agentes públicos deve ser sempre voltada ao “interesse público”, em sentido amplo.

Mas tudo isso – conceito de objetivo, finalidade, função –, no fundo retrata mera sopa conceitual. O que tem valor não são os rótulos, mas a real natureza jurídico-constitucional dos institutos e seus préstimos.

Ora, o objetivo imediato de um tributo, qualquer tributo, é a arrecadação. Sua “função reguladora”, por óbvio, não desnatura seu objetivo. E seu propósito final – ou sua finalidade – é atender aos objetivos primordiais traçados na Constituição.  Esses objetivos maiores constitucionais vinculam (ou deveriam vincular) o agente público dos três poderes.

Quando o Presidente da República edita um decreto ajustando a incidência tributária do IOF, dentro da margem que lhe foi conferida pelo legislador (leia-se, atuação delegada ao PR), a análise de desvio ou não de finalidade não se confunde com a avaliação do maior ou menor grau de regulação fiscal que esse tributo obterá.

Seu objetivo imediato e explícito segue relacionado à temática primária da arrecadação (ainda que se esteja a minorar a alíquota dentro da margem legal), seu “objetivo fundamental” (propósito constitucional) pode ser, por exemplo, a redução das desigualdades; e sua finalidade não pode jamais se desviar do interesse público. O eventual caráter extrafiscal e a exacerbação de sua função reguladora, por óbvio, não inibem o objetivo arrecadatório do tributo. Por delegação legal é dado ao PR reduzir ou majorar as alíquotas dentro das margens legais. Prática, aliás, perpetrada por todos os governos passados, notadamente os submetidos à vigente ordem constitucional-tributária, jamais com esse grau de questionabilidade que agora se vê.

Daí porque, não se pode entender – como menciona a decisão liminar do STF – como sendo uma “excepcionalidade” o PR usar da faculdade conferida no artigo 153, §1º da CR/88 (“É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos…”).  

Os ajustes facultados pela Carta Magna – dentro dos limites e condições pré-estabelecidos pela Lei -, para mais ou para menos, são atos normativos delegados que trafegam na margem já delimitada na legislação. Por razão lógica e para eficiência e exequibilidade – e por expressa previsão constitucional! –, esses decretos presidenciais não têm relação com o princípio da anterioridade tributária (a legislação delegante, essa, sim). É uma institucionalização tributária que tem sede constitucional e por isso não se pode dizer sequer que embalaria exceção ao referido princípio.

De outro lado, o incremento de alíquotas do IOF, conquanto possa repercutir na cadeia financeira, claramente se revela, dentre as opções arrecadatórias disponíveis, uma das que podem atender ao objetivo de redução das desigualdades, já que com algum sacrifício, em especial dos setores mais abonados, o governo busca obter recursos para reequilibrar suas contas e manter seus investimentos primários (saúde, educação, segurança…), além dos programas sociais.

Por isso soa como mera retórica do mercado, para conveniência das pretensões liberais e elitistas, o baralhamento de conceitos, cuja distorção hermenêutica pretende submeter a utilização de uma faculdade presidencial (claramente voltada a atender ao interesse público) a uma suposta “função precípua reguladora”. A ponto de cogitar eventual “desvio de finalidade” num decreto destinado a viabilizar que o Estado cumpra devidamente suas obrigações para com a população, missão que reclama o equilíbrio em suas contas. 

Sem dúvida, mesmo os mais críticos têm ciência de que a majoração de alíquotas proposta no decreto presidencial, que logicamente redundará em aporte arrecadatório, tem por finalidade o interesse público (e não interesses privados ou escusos), com o subjacente propósito de promover a redução das desigualdades sociais.  A forma de fazê-lo, neste particular (ajuste de alíquotas do IOF dentro dos limites legais), incumbe ao Presidente da República, somente a ele, e não ao parlamento ou ao judiciário. 

E o PR é quem arcará como os ônus ou os bônus políticos derivados de sua gestão. Num sistema tripartite, um poder não pode ser sufocado por outro. E muito menos capturado pela lógica selvagem do mercado, assessorado pelas piruetas hermenêuticas de seus “especialistas de estimação” e descompromissado com o bem estar da população, em especial, a mais carente.

No fundo é mais do mesmo: sempre que a opção é pelo social, o “mercado” torce o nariz…

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(*) Paulo Calmon Nogueira da Gama – Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da Associação Juízes para a Democracia

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