O neofascismo e sua maior inimiga atual: a Justiça independente e democrática, por Paulo Calmon Nogueira da Gama
Parte da ultradireita mundial tem sido rotulada, com acerto, de “neofascista”.
Para atrair mentes e corações “susceptíveis”, o neofascismo retoma, com o mesmo grau de falsidade e demagogia, o discurso do fascismo clássico.
Como na versão clássica, utiliza apelos ultranacionalistas (“pátria acima de todos”); instila o medo e delineia os inimigos a serem batidos (“comunistas”, “esquerdopatas”, intelectuais…); subjuga a ciência para que vicejem suas “verdades míticas”; valida práticas autoritárias (incluída a censura), e o faz, paradoxalmente, “em nome da liberdade”… Mas diversamente do fascismo clássico, o neofascismo incorpora políticas econômicas liberais, como atalho para obtenção de seus objetivos de dominação e discriminação. Como numa versão revista e atualizada. E, lapidada, ainda mais perigosa.
Se, do ponto de vista político, no âmbito das democracias modernas, o neofascismo tem, de regra, buscado se hegemonizar nas esferas executiva e parlamentar através do sistema eleitoral (como exceção, por meio de golpes de força), no que diz respeito à estrutura judicial, só lhe resta a opção de subjugá-lo pela força, através da pressão, da coação e, no limite, da intervenção.
O que se vê atualmente no Brasil – pressão nas altas cortes de Justiça, tentativa de coação de ministros, planos golpistas de intervenção no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral –, é o desenho eloquente da incompatibilidade do sistema neofascista com o ambiente de uma Justiça independente e democrática.
Embora prenhe de mazelas (elitismo, seletividade, lentidão etc), o fato é que a Justiça brasileira ainda pode ser qualificada como uma instituição “democrática”, à luz do constitucionalismo vigente, em razão de algumas de suas características: permite amplo acesso à população, tem potencial garantista para tutela dos direitos humanos, pode proteger os interesses de minorias, corrige excessos ou abusos por parte de agentes públicos dos três poderes, enfim, aplica – ao menos pelo ideal constitucional – a mesma lei para todos…
Essas mesmas características da Justiça atual evidenciam sua incompatibilidade absoluta com a essência da extrema-direita, no Brasil, representada pelos autodenominados “patriotas” ou “gente de bem”, virtuosos e puros, exatamente como seriam os arianos de Hitler…
Se o neofascismo se alimenta de subjugar inimigos, discriminar as minorias e os mais vulneráveis (por gênero, cor, opção sexual, religião, miserabilidade, nacionalidade etc), é inadmissível ao “patriota” que uma instituição do Estado o coloque em pé de igualdade com essa “gentalha” inferior. O pressuposto não somente lógico, mas até mesmo divino inoculado em sua mente e em seu coração, é o da hierarquia social. Como admitir o mesmo tratamento, iguais direitos e obrigações, a “estirpes” diferentes?
Enfim, a igualdade jurisdicional é incompatível com a percepção que o neofascista tem de si: um cidadão superior que não pode ser nivelado em direitos e obrigações aos inferiores.
Fica fácil entender a razão pela qual o sistema Judicial, com todos os seus grandes e graves problemas, tem sido, na quadra atual, com base na missão constitucional que legitima sua atuação, um poderoso bastião da democracia contra as investidas neofascitas.
Salus populi suprema lex esto!
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Paulo Calmon Nogueira da Gama – Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, membro da Associação Juízes para a Democracia