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QUEREM TRANSFORMAR GAZA EM UMA NOVA DUBAI?

Qualquer pessoa sensata sente-se aliviada com o cessar-fogo em Gaza. Parar o morticínio perpetrado pelas forças israelenses é fundamental. O fim dos bombardeios permanentes e das mortes em massa deve ser motivo de celebração e entendido como uma derrota tática do sionismo e uma vitória momentânea dos palestinos e de todos os povos do mundo.


Mas fica uma pergunta no ar, qual será o futuro da região e, principalmente, qual será o destino do povo palestino?


O que realmente pode estar por trás do chamado Plano Trump de Paz?


Com certeza, o que o governo dos Estados Unidos quer não é a paz e o bem-estar daqueles povos que vivem na região, em especial os palestinos. Interesses geopolíticos, econômicos, militares estão no cálculo, em especial os interesses de um império decadente que tem perdido seu arsenal de soft power e cada vez mais recorrido à violência para tentar recuperar o seu domínio sobre todo o mundo.


O plano de paz foi apresentado por Trump no dia 29 de setembro de 2025 com 20 pontos a serem seguidos. Os 20 pontos incluem o cessar-fogo, troca dos prisioneiros, desarmamento do Hamas, reconstrução, governo de transição e medidas de consolidação da administração local. A previsão é que o plano siga 3 fases.


A fase 1 previa o cessar-fogo e o recuo das forças militares israelenses para uma linha na fronteira de Gaza; a troca dos prisioneiros e a devolução dos corpos dos prisioneiros israelenses; o retorno do fluxo da ajuda humanitária.


As fases 2 e 3 começariam com o desarmamento do Hamas; a retirada completa das tropas israelenses do território de Gaza; a formação de uma força internacional de estabilização sob a supervisão de monitores independentes dos países europeus e árabes e treinamento de forças policiais palestinas pelo Egito e Jordânia; formação de uma administração tecnocrática através da organização de um conselho de técnicos palestinos independentes para a gestão dos assuntos diários do território sob a supervisão de um conselho gestor internacional com a presença do próprio Trump e do criminoso de guerra britânico Tony Blair. Por fim, a reconstrução do território com fundos árabes, europeus e estadunidenses.


Não podemos esquecer que alguns meses atrás circulou pelas redes sociais imagens feitas por IA onde a Faixa de Gaza era apresentada como uma Riviera à beira do Mediterrâneo, com resorts de luxo, restaurantes, turistas ricos etc.


Não acredito em coincidências. Apesar da rejeição por parte de toda gente com alguma sensibilidade humana e empatia, a peça de propaganda da “Riviera de Gaza” não deve ter sido um deboche ou uma brincadeira de mau gosto, não deve ter sido lançada ao acaso. Ao contrário, pode ser que nos cálculos do capitalismo internacional e do Trump, o atual plano de paz seja exatamente o primeiro passo para a implantação do projeto de uma Riviera paradisíaca para bilionários construída sobre o sangue do povo palestino.


Somos obrigados a pensar sobre os possíveis cenários futuros a partir da implementação do plano de Trump e como devem se posicionar Israel, o Ocidente, os países árabes e, a resistência palestina, com o predomínio do Hamas, e a Autoridade Nacional Palestina.


Nestes primeiros dias de implementação do plano de paz o que importa é destacar que tanto o Hamas, quanto Israel, aceitaram parcialmente os seus pontos. Entre os pontos não aceitos, por exemplo, o Hamas rechaça a ideia de depor as armas imediatamente e informa que só as entregaria para uma autoridade soberana e constituída do Estado da Palestina. Israel, pelo seu lado, não abre mão de que só exista uma autoridade soberana na região, a autoridade sionista.


Por um lado, Trump fez o seu show, viajou para Israel, discursou no Knesset, enquadrou Netanyahu, participou da reunião de Cúpula de Paz no Egito, tirou foto cumprimentando Mahmoud Abbas da Autoridade Nacional Palestina, ameaçou o Hamas a depor as armas à força, enfim, se manteve sob os holofotes internacionais. Israel, por sua vez, continua a fazer o que é usual na sua história, desde 1948, o não cumprimento dos acordos que faz. Os últimos vinte prisioneiros israelenses, chamados pelos sionistas e pela mídia de reféns, já foram entregues para Israel, ainda estão sendo entregues os vinte e oito corpos de israelenses, pois existe uma dificuldade de localização em meio aos escombros e em diferentes partes de Gaza. Os palestinos recebem os corpos de prisioneiros com marcas de tortura. Israel sendo Israel continua a fazer as suas manipulações e usa qualquer coisa como pretexto, inclusive mentiras, para quebrar os acordos, diminuindo pela metade a entrada da ajuda humanitária, de 600 para 300 caminhões e constantemente matando palestinos.


Mesmo parte da imprensa ocidental tem reconhecido que Israel voltou a atacar Gaza e no dia 14 de outubro mais cinco palestinos foram mortos pelas forças militares israelenses. Como escrevi anteriormente, nada de novo, apenas Israel e a sua natureza fascista. Lembrei de um vídeo do Che Guevara dizendo que não devemos confiar nem um pouquinho no imperialismo (“No se puede confiar en el imperialismo, ni tantito así… Nada!”) e como o sionismo é um dos braços do imperialismo, acho que não podemos confiar “nadica de nada” em Israel. E, como sabemos muito bem, desde 1948, já deram mil e uma razões para isso. Os sionistas e quaisquer governos de Israel são tão confiáveis quanto uma nota de 3 dólares pintada de cor de abóbora.


Ainda é cedo para uma avaliação mais precisa sobre como vai se desenvolver a implementação do plano de paz. No entanto, é possível perceber que existem muitas contradições e o jogo pesado está sendo jogado.


E o que está sendo jogado são diferentes projetos em disputa sobre a Palestina e o seu povo. A derrota tática israelense obriga, momentaneamente, a colocar de lado o seu plano estratégico da “Grande Israel”, de ocupar completamente e limpar Gaza da população palestina, consolidando a existência de um único Estado na região. Também podemos imaginar a existência de uma fissura no campo do Ocidente pró-sionismo, o que estaria obrigando a mudança, pelo menos retórica, da posição dos países da Europa Ocidental em relação à política genocida de Israel. A imensa mobilização social pelo mundo todo contra o genocídio dos palestinos e por uma Palestina Livre isolou Israel e, pela primeira vez, desde 1948, desmontou o mito de ser a única democracia do Oriente Médio, revelando a sua verdadeira face, ser um Estado étnico, colonialista e supremacista, com características fascizantes e com base no apartheid e segregação das populações não-judaicas.


O desgaste e isolamento de Israel atingiu em cheio os governos do Ocidente, especialmente o governo dos Estados Unidos, que financiam e sustentam há décadas o que já foi chamada de “o nosso porta-aviões no Oriente Médio”.


Do ponto de vista palestino a questão principal é, além de garantir um cessar-fogo permanente, a construção do Estado da Palestina, soberano e independente. O Hamas e outras forças da resistência palestina propõem dez anos para reorganizar a região, reconstruir a infraestrutura e as instituições da sociedade, admitindo que devem ser convocadas eleições gerais após um período de transição.


Israel não quer nem pensar em qualquer alternativa que vislumbre a existência de um Estado palestino absolutamente soberano. As diferentes correntes do sionismo transitam entre aquelas que querem o extermínio total e desaparecimento da população palestina, em Gaza, Jerusalém Oriental e Cisjordânia, e ocupação dos territórios pelo Estado de Israel, passando por outras que preferem a expulsão de parte da população palestina para outros países árabes. As posições sionistas mais “moderadas”, pelo seu lado, proporiam a manutenção do estatuto colonial do que resta da Palestina histórica e a submissão do povo palestino, como tem sido desde 1948.


A proposta do Acordo de Trump não garante a construção e reconhecimento de um Estado Palestino soberano abrangendo Gaza, Jerusalém Oriental e Cisjordânia, e mantém a posição de subordinação colonial. E aqui ainda estaria em jogo o papel de Israel neste processo colonial, ou o seu controle absoluto, como foi até o momento, ou a cessão do controle de uma força internacional sob domínio do Ocidente e com participação dos submissos aliados árabes e a construção de um Protetorado Colonial.


Para Trump e o seu plano, neste momento parece ser mais interessante um caminho diferente, tanto dos sionistas mais extremados do governo Netanyahu, quanto dos palestinos.


Ganhar tempo e tentar cooptar parte da elite política palestina pode ser muito conveniente para os planos de Trump e da aliança imperialista coletivo ocidental, mesmo que isso signifique contrariar os segmentos mais extremados do sionismo.
Não podemos esquecer que transformar a Faixa de Gaza em um novo “Emirado” rico pró-Ocidente pode ser perfeito não apenas para a acumulação do capital, mas também do ponto de vista estratégico geopolítico na região do Oriente Médio. Também não se pode esquecer que existem reservas de gás na costa de Gaza e a possibilidade da sua exploração pelas empresas ocidentais. Isso garantiria a disponibilidade de gás para uma Europa em crise desde a destruição terrorista dos gasodutos russos Nord Stream 1 e 2, em 2022.


Vamos ver quais serão os próximos passos.

Vila Nova de Gaia, Portugal, 17 de outubro de 2025.

João Ricardo Dornelles – Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz; Analista Político do Canal Iaras e Pagus/Youtube.

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João Ricardo Dornelles

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz; Analista Político do Canal Iaras e Pagus/Youtube.

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