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Reprodução| A Captura do Estado: Crime Organizado e Corrupção no Rio de Janeiro, por Luís Nassif

O crime organizado perpassa as elites econômicas, politicas e institucionais, é o sistema, mané.

(Fonte: Luís Nassif – GGN. O Canal Pororoca reconhece a autoria integral do autor sobre o texto abaixo.)

Nunca cultivei proximidade com Anthony Garotinho. Mas testemunhei — e denunciei — a armação grotesca montada contra ele, envolvendo juiz de Campos dos Goytacazes, Ministério Público, Tribunal Eleitoral e Rede Globo. Foi um dos episódios mais infames, mesmo para o nível Lava Jato, período em que a infâmia se tornou manchete diária. O ápice veio quando Garotinho foi arrastado de maca do hospital onde estava internado, sob os gritos desesperados de sua filha. No dia seguinte, um cronista infame de O Globo acusou a filha de histeria.

A política fluminense continua distante de minhas preocupações habituais, mas aquele episódio revelou Garotinho como um outsider corajoso. Por isso, busquei ouvi-lo sobre o crime no Rio de Janeiro — não apenas o que se exibe nas favelas dominadas pelo Comando Vermelho, mas o que se infiltra por todos os poros dos poderes públicos.

O dinheiro sujo e os postos de gasolina

Segundo Garotinho, mais de 60 postos de combustíveis no estado lavam dinheiro para o Comando Vermelho. Mais grave: tanto o governo estadual quanto o Tribunal de Justiça tentaram reabrir a REFIT — a grande alimentadora desses esquemas — após seu fechamento por ofensiva federal.

O caso REFIT é emblemático. A empresa, controlada por Ricardo Marques, conhecido como Magro, acumulava dívidas estratosféricas: R$ 25 bilhões no total, sendo R$ 11 bilhões ao Rio de Janeiro, R$ 8 bilhões a São Paulo e o restante distribuído entre outros estados. Tratava-se de um império construído sobre adulteração de combustíveis e sonegação fiscal em escala industrial.

O mais revelador: integrantes do governo, do Tribunal de Contas e até do Supremo Tribunal Federal compareceram a eventos com esses empresários investigados. Uma aliança clara entre setores político, judiciário, empresarial e criminal para a autopreservação mútua do sistema.

As armas do Exército e a operação rocambolesca

O Exército descobriu que armas de seu arsenal haviam sido desviadas para o Rio de Janeiro. A inteligência militar rastreou o material até a Rocinha. O que se seguiu parece roteiro de filme B — mas aconteceu.

Uma operação conjunta foi planejada entre Exército e Polícia Militar, mediada por agentes penitenciários. Dois oficiais, identificados como Bruno e Lima, disfarçaram-se de agentes penitenciários e tentaram negociar com a liderança do Comando Vermelho dentro de um presídio. Foram desmascarados e quase presos. Leonardo Franceschin, então subsecretário de inteligência, precisou intervir para explicar que se tratava de operação sigilosa.

As armas foram posteriormente localizadas em um carro em Jacarepaguá, exatamente como combinado com o líder criminoso. Ninguém foi preso.

A expansão territorial do crime

Nos últimos anos, o Comando Vermelho recuperou territórios antes perdidos para milícias e avançou sobre novas áreas, como o chamado “Corredor da Estrada de Madureira”. Segundo Garotinho, a facção teria sido um dos grandes patrocinadores da eleição de Cláudio Castro. Os problemas começaram quando explodiu a rivalidade entre o governador e o presidente da Assembleia Legislativa.

A situação chegou a tal ponto que Zinho, chefe da maior milícia do Rio, pediu para ser preso pela Polícia Federal, temendo ser assassinado pelo próprio Estado.

Garotinho estima que pelo menos 50% dos deputados estaduais estejam envolvidos com tráfico, milícia, roubo de carro, roubo de carga ou furto de fios de cobre da infraestrutura de transporte.

O Ministério Público domesticado

Garotinho admite que o Ministério Público estadual conta com promotores sérios. Mas a instituição está fortemente atrelada aos governadores, o que compromete fundamentalmente sua função fiscalizadora.

A evidência mais clara: após desentendimento com o governador, o presidente da Assembleia Legislativa tornou-se alvo de investigações sobre enriquecimento ilícito. Investigações existem, ele se defende alegando legalidade em todas as atividades — mas o timing é revelador.

Em outros tempos, o ex-procurador-geral do MPRJ, Cláudio Lopes, foi denunciado, afastado, e preso preventivamente por atrasar investigações e vazar informações que comprometeriam o governador Sérgio Cabral.

No massacre da Penha, a atuação do Ministério Público foi avalizar previamente a operação e bloquear a fiscalização por poderes independentes.

TH Joias: o deputado traficante

O caso mais emblemático é o de TH Joias, um deputado traficante que frequentava eventos oficiais, vendia drones para o crime organizado, comercializava árvores e joias, indicava cargos públicos e circulava próximo às altas esferas do poder.

Funcionava assim: um sistema de propinas pagas em ouro para contratos vultosos. A empresa Canacunt, de Márcio Macedo, estava envolvida em contratos milionários com a CEDAE. As propinas eram convertidas em joias, distribuídas entre traficantes, artistas e membros do governo.

Depois de anos de atuação evidente, somente em 3 de setembro de 2025 foi alvo de operação policial — a Operação Zargun da Polícia Federal, investigando tráfico de drogas, intermediação de compra e venda de armas, equipamentos anti-drones e lavagem de dinheiro.

O esquema dos carros roubados

Entre janeiro e agosto de 2025, foram registrados 193 mil carros roubados ou furtados no Rio de Janeiro. Metade foi “recuperada”.

A denúncia: empresas de rastreamento como Atena Zeg atuam em conluio com policiais. Funciona assim: após o acionamento da cobertura do seguro, os carros são devolvidos em troca de comissões. Um ciclo lucrativo para todos os envolvidos — exceto para a vítima e a sociedade. E que encarece substancialmente o preço dos seguros na cidade.

A falência institucional

O que emerge desse relato não são casos isolados de corrupção, mas um quadro sistêmico de captura do Estado. Não se trata de alguns políticos corruptos ou policiais venais — trata-se de uma aliança estrutural entre crime organizado, empresariado, política e setores do Judiciário e do Ministério Público.

Quando um chefe de milícia prefere a prisão federal ao convívio com as autoridades estaduais, quando oficiais do Exército negociam armas roubadas com traficantes sem prender ninguém, quando metade de uma Assembleia Legislativa está comprometida com o crime — não estamos diante de desvios. Estamos diante de um sistema.

Um sistema que se autopreserva, que coopta ou elimina quem o ameaça, que transforma instituições republicanas em ferramentas de proteção mútua entre poderosos e criminosos.

O Rio de Janeiro não enfrenta uma crise de segurança pública. Enfrenta a dissolução do próprio Estado de Direito.

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