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Trump e a falsa compreensão sobre a independência dos poderes no Brasil, por Eugênio Aragão

O presidencialismo norte-americano tem algumas características que nos são estranhas e parecem, na nossa ótica, disfuncionais. Para os estadunidenses, que só veem o mundo por seu umbigo, o Brasil deve mimetizar seu modelo.

A começar pelo papel do executivo na relação com o judiciário. O chefe da persecução penal norte-americana é o Ministro da Justiça. Ele é ao mesmo tempo chefe da pasta (DoJ ou Department of Justice) e Procurador-Geral da República (Attorney-General), escolhido pelo presidente da República, que pode dispor do cargo a qualquer momento.

Aliado a isso, não há carreira no ministério público de lá. District attorneys são eleitos e escolhem seus assistentes, que ocupam cargos em comissão e são, por consequência, demissíveis ad nutum. O poder persecutório é político.

Isso explica por que a ação penal nos Estados Unidos da América do Norte é disponível. Acordos de não-persecução são corriqueiros e, além de importarem em enorme economia processual, servem para que algumas práticas criminais possam ser subtraídas do debate público, quando são inconvenientes.

O caso do bilionário pedófilo Epstein é um bom exemplo. Quando foi apanhado pelas garras da justiça na primeira vez, fez um acordo de não-persecução e se livrou. As provas de seus malfeitos foram classificadas como sigilosas. Assim, conseguiu manter-se por mais alguns anos na senda do crime, longe da curiosidade pública. Só a coragem das vítimas, que não se deixaram intimidar e nem corromper por vultosos montantes de “reparações”, é que formou o ambiente capaz de levar o criminoso e sua namorada ao banco dos réus.

Epstein morreu em circunstâncias suspeitas. Teria, segundo a versão do DoJ, cometido suicídio. Curiosamente, a câmera de vigilância que estava postada em frente a sua cela, apagou por um bom tempo, não permitindo apontar se alguém entrou no recinto ou não. Mas, por outro lado, há afirmações também de que a arquitetura das celas na penitenciária de Manhattan, onde Epstein estava preso, é tal que impede qualquer tentativa de suicídio: camas estão à altura do chão e não há qualquer ponto de apoio para se fixar cordas ou lençóis para a autoimolação.

Mas o governo Trump insiste na tese do suicídio. Epstein, por sinal, teria tomado sua vida quando Trump era presidente em seu primeiro mandato.

Muito conveniente, constata-se hoje, quando vêm à tona vídeos e cartas que comprovam o estreitíssimo relacionamento de Epstein com o atual presidente norte-americano por mais de dez anos. “Epstein é um cara incrível. E dizem que gosta muito de mulheres, como eu. E de preferência do lado das mais novas”, acusam Trump de ter escrito em livro editado para o quinquagésimo aniversário de Epstein.

O debate público que tende a contaminar até a base de apoio do atual presidente norte-americano levou este a demitir uma procuradora federal que estava à frente do caso Epstein e colocar na fila de exoneração a atual Attorney-General. Se isso apaziguará a ira da sociedade civil, é duvidoso.

Esse comportamento do chefe do executivo norte-americano deixa entrever por que achou natural chantagear o presidente da República do Brasil para que fizesse cessar a persecução penal contra Jair Bolsonaro. Trump, no seu jeito norte-americano de achar que o que é bom para os EEUU é bom para o mundo, deve pensar que, como ele, o presidente Lula pode demitir Paulo Gonet e determinar que todos os documentos sobre a tentativa de golpe no Brasil possam ser classificados como sigilosos pelo ministro da Justiça e subtraídos do conhecimento público.

Talvez o presidente Trump não entenda que, no Brasil, a ação penal pública é indisponível, submetendo-se o Ministério Público ao princípio da legalidade. É dever da autoridade persecutória iniciar a ação penal, se constatar indícios de autoria e materialidade de crime. Acordos de não-persecução só são admitidos para crimes de menor potencial ofensivo. Tentar golpe de Estado não figura entre eles.

No mais, o Ministério Público, no Brasil, é independente. O chefe do executivo não tem qualquer ascendência sobre o Procurador-Geral da República, que não se confunde com o ministro da Justiça. Por isso, exigir que a persecução penal contra Jair Bolsonaro seja suspensa ou interrompida em troca de alívio de taxas sobre exportação de produtos brasileiro é tão estranho quanto exigir de um astronauta de jogue capoeira antes de assumir o comando de uma nave espacial. Uma coisa nada tem a ver com a outra.

Inaceitável é que um chefe de Estado estrangeiro exija, ultrapassando o princípio da não-intervenção nos assuntos internos de outro país, que este submeta o poder judiciário a inconstitucional pressão para tratar com leniência algum réu em ação penal. Aliás, fosse, por absurdo, o presidente Lula atender à pressão do presidente Trump, incorreria em crime de responsabilidade por atentar contra a independência dos poderes da República.

Por isso, além de grave violação dos princípios elementares da Carta da ONU, que se assenta sobre a igualdade soberana dos estados, a intromissão em assuntos da exclusiva jurisdição brasileira, na espécie, parece ato de pura ignorância sobre como nossas instituições são organizadas. A Procuradoria-Geral da República acusou Jair Bolsonaro atendendo à obrigatoriedade da ação penal e o Supremo Tribunal Federal recebeu a denúncia dentro de sua competência constitucional, não sujeita à discricionariedade do executivo e muito menos aos humores do presidente Trump. Nada há a negociar a respeito.

Eugênio Aragão – advogado e ex-ministro da Justiça

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