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Os tentáculos do capitalismo estadunidense agem como piratas

(Fonte: GGN. O Canal Pororoca reconhece a autoria integral do autor sobre o texto abaixo)

Peça 1 – a Boeing comprou a Embraer

Há um engano na versão de que a Boeing comprou a Embraer e precisou devolver.

A versão oficial é que a Boeing ofereceu oficialmente cerca de US$ 4,2 bilhões pela divisão de aviação comercial da Embraer, em um acordo anunciado em julho de 2018 e formalizado em dezembro do mesmo ano.

Mas o valor e a estrutura do negócio escondiam uma operação muito mais profunda de controle — não apenas financeiro, mas tecnológico e estratégico.

O acordo previa a criação de uma joint venture chamada “Boeing Brasil – Commercial” (BBC), com a seguinte composição:

  • Boeing: 80% de participação, aportando cerca de US$ 4,2 bilhões;
  • Embraer: 20%, mantendo participação minoritária e papel de fornecedora.

A avaliação total da divisão de aviação comercial da Embraer era estimada em US$ 5,26 bilhões, mas a Boeing pagaria apenas pela fatia majoritária — o que, na prática, subavaliou o ativo. Essa subavaliação foi criticada por analistas e ex-dirigentes da Embraer como um “desconto geopolítico”.

Foi mais que isso. A história real é que a Boeing levou o que queria, sem despender um tostão: cerca de 500 engenheiros brasileiros, a maioria dos quais da Embraer, trabalhando em áreas estratégicas da empresa.

Peça 2 – as tecnologias críticas

Os mais de 500 engenheiros recrutados correspondiam, em média, a 20% do núcleo técnico de engenharia de sistemas complexos. Isso afetou diretamente:

  • PSM (Plataforma Suborbital de Microgravidade), que dependia de engenheiros de integração de voo;
  • Projeto 14-X, da Força Aérea e do ITA, que exige domínio de propulsão scramjet;
  • e o Amazônia-1, coordenado pelo INPE e com participação da Visiona, Akaer e Avibras.

Efeito colateral: segundo fontes setoriais, subcontratadas de defesa passaram a atrasar cronogramas, especialmente no 14-X, em função da evasão de quadros seniores.

Consequência: perda de capacidade de “soberania tecnológica incremental” — ou seja, o Brasil deixa de dominar as cadeias intermediárias que ligam o protótipo ao produto industrial.

A intenção da Boeing foi avançar sobre as seguintes tecnologias críticas da Embraer:

1. Engenharia de Sistemas Complexos (Systems Integration)

A Embraer domina a arte de integrar milhares de sistemas — aviônicos, hidráulicos, elétricos, digitais — num ambiente leve, redundante e certificável. Essa competência é raríssima, mesmo entre fabricantes globais.

2. Aerodinâmica e materiais compostos

A Embraer se tornou referência mundial no uso de materiais compostos leves (fibra de carbono e resinas epóxi) em estruturas de alta resistência — asas, fuselagens e empenagens.

3. Aviônica, software embarcado e fly-by-wire

Desde o projeto do ERJ-145, a Embraer desenvolve sistemas digitais de controle de voo (fly-by-wire) em parceria com a Parker Hannifin e BAE Systems, mas com arquitetura própria

No KC-390, a Embraer criou a primeira implementação latino-americana de fly-by-wire militar full digital, em código-fonte nacional.

4. Modelagem digital e engenharia simultânea

A Embraer foi pioneira na adoção do conceito de engenharia digital integrada (digital twin), simulando em tempo real todas as fases do projeto — design, produção e manutenção.

Peça 3 – o entreguismo militar

A Embraer é filha direta da estratégia de defesa, do ITA e do DCTA, criados nos anos 1950 sob orientação de Casimiro Montenegro Filho.

No governo Bolsonaro, no entanto, ocorreu um alinhamento total aos Estados Unidos, resultando em concessões em defesa, inteligência e tecnologia. O resultado foi que as resistências internas dos militares foram abafadas pela alta cúpula da Aeronáutica e do Ministério da Defesa.

Quando começaram as negociações da venda da Embraer à Boeing, o Comando da Aeronáutica optou por não interferir no processo, alegando que a divisão militar ficaria fora do acordo. Nos bastidores, oficiais do ITA e engenheiros do DCTA classificavam o arranjo como “entreguismo técnico disfarçado de sinergia”.

A ala nacionalista (ITA/DCTA) defendia a manutenção do controle brasileiro sobre qualquer segmento com spin-off de uso militar. Esse grupo tinha apoio discreto de engenheiros seniores da Embraer e do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE).

A ala política (Alto Comando), liderada por oficiais próximos ao então Ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva, e ao General Braga Netto, via GSI. Essa ala via o acordo como uma “oportunidade de integração global”.

A União tinha uma ação de classe especial, que lhe permitia impedir a operação. Mas o Ministério da Defesa não exerceu esse poder.

E pulularam declaração públicas a favor do acordo:

  • Brigadeiro Rossato (ex-comandante da FAB): declarou em 2018 que “a Embraer tem mais a ganhar do que a perder” com o acordo.
  • Brigadeiro Baptista Júnior (então chefe do EMAER): afirmou que “a parceria amplia o mercado do KC-390”.
  • Clube Militar (RJ) publicou nota em 2019 defendendo o “avanço tecnológico conjunto” com a Boeing, sem mencionar soberania.
  • Nenhuma nota oficial da FAB ou do MD entre 2020 e 2022 condenou o êxodo técnico.

Peça 4 – os interesses geopolíticos norte-americanos

O movimento da Boeing se encaixa num contexto de reconquista do mercado de defesa e espaço latino-americano após a penetração chinesa via CETC, CASIC e Norinco, e da russa Roscosmos.

Nos bastidores, o Pentágono e o Departamento de Estado usaram o argumento da proteção de cadeias críticas para justificar a absorção de talentos brasileiros.

Fontes do US International Trade Administration chegaram a classificar o cluster de São José dos Campos como “mercado estratégico de mão de obra aeroespacial”.

Lembre-se que a Lava Jato colocou a Embraer sob supervisão total de um escritório de advocacia ligado ao Departamento de Justiça.

Peça 5 – a reação e o surpreendente papel do Ministério da Defesa

Em 2022 e 2023, aí já no governo Lula, a  ABIMDE (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança) e AIAB (Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil) abriram ação civil pública. O ponto central foi a transferência de know-how sob confidencialidade durante as negociações Embraer–Boeing (2018-2020). Esse material teria sido posteriormente usado para identificar engenheiros-chave e “sugar” capital humano.

A petição inicial, elaborada por consultores jurídicos das duas entidades com apoio técnico de engenheiros do setor, sustentou:

  1. Que a Boeing, durante as tratativas de fusão com a Embraer (2018–2020), teve acesso a informações confidenciais, inclusive listas de engenheiros-chave, arquiteturas de software e metodologias de integração digital. 
  2. Que a posterior contratação em massa desses profissionais configurou aproveitamento indevido de segredo industrial, conforme o art. 195 da LPI.
  3. Que o recrutamento predatório produziu dano difuso ao interesse nacional, pois desestruturou setores integrantes da Base Industrial de Defesa (BID).
  4. Que, ao agir dessa forma, a Boeing exerceu abuso de poder econômico, com violação do art. 36 da Lei 12.529/2011.
  5. Que o episódio atentou contra o princípio constitucional da soberania tecnológica e do desenvolvimento nacional autônomo (art. 219 da CF).

Para surpresa geral, o  Ministério da Defesa minimizou o risco de soberania (provavelmente ainda sob influência da ala militar pró-EUA no governo anterior). 

Sua posição:

  • Fica notório a ação de captura de talentos profissionais brasileiros pelo grupo Boeing … sobretudo no polo industrial aeronáutico de São José dos Campos” 
  • “Os argumentos apresentados na ACP ainda não são suficientes para demonstrar o interesse processual da União no escopo da soberania nacional” 
  • “Não foram vislumbrados dispositivos legais em vigor (…) que possam ser empregados de imediato para cessar as ações negativas da Boeing nesse campo comercial, sobretudo devido ao princípio da livre concorrência de mercado.” 

Coube ao MDIC reverter essa posição no início de 2023, sustentando que havia elementos para considerar abuso de poder econômico com impacto na política industrial.

A ação está sob sigilo e há meses não  se tem nenhuma informação sobre ela.

Por Luís Nassif

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