BOLSONARO E GENERAIS NO BANCO DOS RÉUS, ANISTIA PARA GOLPISTAS É INCONSTITUCIONAL
João Ricardo Dornelles
(Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz; Analista Político do Canal Iaras e Pagus/Youtube).
Pela primeira vez na história do Brasil, generais estão sentados no banco dos réus respondendo, juntamente como Bolsonaro, por participação na organização de um golpe contra a democracia.
A semana que se inicia será decisiva e deverá apontar a condenação dos acusados. Por outro lado, a trama golpista não se encerra com a decisão que o STF deverá proferir nos próximos dias.
Paralelamente às audiências na corte superior, diferentes segmentos da direita, incluindo até alguns jornalistas e comentadores políticos do campo conservador, estão advogando pela “pacificação do país”, pelo “fim da polarização”. Mais uma vez na nossa história falam da importância de “virar a página” e anistiar os envolvidos nos atos golpistas que culminaram na intentona fascista-bolsonarista do 8 de janeiro de 2023.
O que estamos assistindo é a disputa entre dois blocos que polarizam no campo político e apontam projetos antagônicos de sociedade.
Embora a questão seja política, tanto que se expressa em um projeto de lei em tramitação da Câmara dos Deputados, uma das suas dimensões tem se desenvolvido nos debates jurídicos sobre a pertinência das condenações dos chamados “bagrinhos”, o alcance das penas aplicadas, mas também sobre a necessidade de anistia, principalmente para os “tubarões” que deverão ser condenados nos próximos dias.
Neste sentido foi que o Deputado bolsonarista Sostenes Cavalcante comandou a ocupação forçada da Mesa Diretora da Câmara de Deputados como forma de criar o ambiente favorável para levar adiante o projeto de anistia geral para os golpistas terroristas de 8 de janeiro de 2023. O projeto de lei proposto prevê a concessão de anistia aos investigados ou processados por ações golpistas entre 14 de março de 2019 e a data de entrada em vigência da lei. A anistia proposta, assim, abrange todas as ações golpistas e terroristas cometidas no período de governo de Bolsonaro, incluindo manifestações verbais ou escritas que ofendam as instituições públicas, desacreditem o processo eleitoral, gerem polarização social, ações que sejam previstas como crime no código penal, ações causadoras de danos ao patrimônio público. O texto propõe que a anistia extinga as condenações penais e os processos em andamento.
Enquanto a bancada golpista no Congresso procura articular a saída da anistia pedindo alto, a grande imprensa corporativa, em conjunto com a Faria Lima, faz o seu jogo, no pêndulo entre a extrema-direita e a busca de uma terceira via, buscando jogar fora o bebê e manter a água suja da bacia. Ou seja, condenar, prender e anistiar Bolsonaro e alguns generais e deixar a porta aberta para uma possível recuperação dos chefes golpistas, fortalecendo uma saída via Tarcísio de Freitas.
Na mesma noite da vitória de Lula sobre Bolsonaro iniciou-se o bloqueio de rodovias nacionais e os acampamentos de fascistas na frente de quartéis pelo país afora. Muitas dessas ações realizadas por grupos bolsonaristas foram explicitamente terroristas, como as manifestações ocorridas no dia 12 de dezembro de 2022, enquanto era realizada a diplomação no TSE do presidente eleito e seu vice, Lula e Alckmin, com a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal e o incêndio de automóveis e ônibus pelas avenidas da capital. Poucos dias depois, na véspera do Natal, tivemos a tentativa malograda de explosão do aeroporto de Brasília.
O ponto alto do golpe antidemocrático foi no dia 8 de janeiro de 2023, com a execução da chamada “Festa da Selma”, convocada semanas antes pelos grupos bolsonaristas em todo país, com apoio e financiamento de empresários, de setores do agronegócio, de pastores das igrejas fundamentalistas neopentecostais, de milicianos de toda ordem e de militares que faziam vistas grossas para as ações que levariam a um golpe de Estado contra o governo recém-eleito, visando instaurar uma ditadura.
É bom lembrarmos que além da destruição promovida pelos terroristas em Brasília, no mesmo dia estava prevista a explosão ou derrubada de torres de alta tensão pelo Brasil afora, o que efetivamente ocorreu nos dias seguintes ao 8 de janeiro, com o objetivo de causar um imenso apagão que levaria ao caos e ao medo. Além disso, ocorreram tentativas de invasão de terroristas bolsonaristas em refinarias de petróleo da Petrobras, visando causar desabastecimento de combustíveis. Além da menção em grande quantidade de mensagens da expressão “Festa da Selma”, foi detectado nos grupos de WhatsApp bolsonaristas em grande quantidade a menção à palavra “refinaria”. A Federação Única dos Petroleiros (FUP) identificou a preparação de atos terroristas em diversas refinarias da Petrobras.
Algumas questões se colocam sobre os atos golpistas, sobre as condenações já definidas em decisões do STF e sobre a denúncia apresentada contra os organizadores e mandantes dos atos antidemocráticos, encabeçada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e militares de alta patente como General Heleno, General Braga Netto, Almirante Garnier, entre outros.
Uma das principais questões colocadas diz respeito aos movimentos políticos da extrema-direita, com apoio explícito ou envergonhado, de setores do chamado Centrão e da grande imprensa hegemônica (Globo, Estadão, Folha, Jovem Pan, Veja etc), que questionam as penas aplicadas aos já condenados por terem sido os que estavam diretamente envolvidos nas desordens do dia 8 de janeiro. E é realmente ridículo aqueles que promoveram práticas de Lawfare na operação Lavajato — e ainda são seus defensores – vir agora acusar o STF de arbitrariedades contra “senhorinhas com bíblia na mão” que passeavam na Praça dos Três Poderes justamente no momento do quebra-quebra. Na audiência de admissibilidade das denúncias de Bolsonaro e seus comparsas, o Ministro Alexandre de Moraes, oportunamente, exibiu vídeos com as imagens do dia 8 de janeiro de 2023, sem deixar dúvidas sobre o nível de violência e destruição realizada. Também ficou claro o envolvimento e a presença dos comandos militares de elite através do “kids pretos” e da guarnição que protegeu os golpistas acampados na frente do Comando Geral do Distrito Federal, conhecido como “Forte Apache”. Em todo esse processo, o golpismo fascista chegou a fabricar a sua musa, “a moça do batom” que, innocentemente, estava apenas passando por ali e “meio sem querer” vandalizou uma estátua em frente ao Supremo Tribunal Federal.
Os projetos de lei que pedem anistia para os golpistas e terroristas já condenados desconsideram a sua própria inconstitucionalidade. Na verdade, não buscam livrar a pele dos “bagrinhos”, mas sim dos “tubarões”, em especial do “tubarão branco” Jair Bolsonaro. Bolsonaro e a sua quadrilha já pediam anistia bem antes da denuncia ser apresentada, levando muitos a identificarem como sendo uma “verdadeira confissão de culpa”. No caso, de dolo, pois não se pode dizer que alguém tenta um golpe de Estado “sem querer” alcançar o resultado. É importante frisar que não existe tentativa nos crimes culposos. Nos crimes culposos não se admite a tentativa. Dessa forma, não se pode dizer que a ação dos golpistas do 8 de janeiro teria sido culposa.
Mas a questão que se coloca é se existe a possibilidade ou não de anistia para os envolvidos nos atos golpistas de terrorismo que levaram ao 8 de janeiro.
O que diz a Constituição da República Federativa do Brasil?
Os incisos 43 e 44 do artigo 5º. da Constituição da República são a base constitucional que se contrapõe aos objetivos do chamado PL da anistia.
A Constituição Federal no seu artigo 5º, nos incisos 43 e 44 estabelece:
*Inciso 43 – a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;*
*Inciso 44 — constitui crime inafiançável e imprescritível a ação armada de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.*
A Lei 14.197/2021 tipifica os crimes contra o Estado Democrático de Direito e determina que não podem ser anistiados justamente para não afrontar os dispositivos constitucionais previstos nos incisos 43 e 44 do artigo 5º.
No entendimento de inúmeros juristas e de alguns ministros do Supremo o projeto de anistia fere estes dois dispositivos da Constituição da República. Os incisos afirmando não ser possível a graça e a anistia têm o significado de que não se admite o perdão. Assim, o STF pode vir a barrar a anistia se o Congresso Nacional aprovar.
A jurista Tânia Maria Oliveira, da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), afirma ser inconstitucional o PL da anistia, dizendo que os parlamentares que o defendem usam os instrumentos da democracia para uma luta que não é jurídica, mas sim política. São os parlamentares que usam o direito e a institucionalidade democrática para anistiar aqueles que atacaram o próprio Parlamento.
(https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-09/anistiar-crimes-contra-democracia-e-inconstitucional-dizem-juristas).
O jurista e ex-ministro Celso de Mello escreveu artigo em que diz que o Projeto de Lei da anistia é inconstitucional, pois é um “ato que afronta e dessacraliza, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição”.
(https://iclnoticias.com.br/celso-de-mello-anistia-transgride-constituicao/).
Como afirmou o jurista Paulo Calmon Nogueira da Gama no seu artigo “Crimes imprescritíveis são inanistiáveis”, publicado no Brasil 247 no dia 14 de abril de 2025:
“E não se ouve falar do óbvio: a imprescritibilidade carimbada constitucionalmente a um tipo criminal revela-se como conteúdo material amplo e continente, em termos de vedação à extinção da punibilidade do agente que o pratica. Ela pressupõe a insusceptibilidade à anistia, à graça, ao indulto ou outra forma de perdão qualquer. E mais que isso. Impede até mesmo que uma lei nova descriminalize condutas que o Constituinte originário reputou imprescritivelmente criminosas (retroatividade benigna). Ou seja, quando o Constituinte originário deliberou petrificar cláusula que arrola algumas espécies delitivas como dotada de punibilidade “eterna” (imprescritíveis), não remanesce campo alguma ao legislador — nem mesmo ao constituinte derivado, tampouco em deliberação plebiscitária — espaço para drible ou mitigação dessa punibilidade. A revisão desse carimbo atributivo somente pode ser feita por nova ordem constitucional, através de nova assembleia nacional constituinte.”
O crime pelo qual deverão ser condenados Bolsonaro e os generais golpistas é de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, ou seja, a tentativa de golpe de Estado. Os bolsonaristas dizem que não haveria crime, pois o golpe não obteve sucesso, teria sido apenas tentativa. Bom, se os golpistas tivessem sucesso nessa altura do campeonato nada disso estaria sendo debatido, até porque, possivelmente, o próprio STF teria sido fechado e teriam sido instituídos tribunais de exceção, ministros do Supremo talvez estivessem presos, exilados ou mortos, o próprio Presidente Lula e o seu vice Alckmin poderiam ter sido executados, como aparece nos planos dos golpistas que foram investigados pela Polícia Federal e fazem parte da denúncia apresentada.
O jurista Lenio Streck publicou no dia 20 de abril de 2025 artigo na Folha de São Paulo afirmando que “os crimes são graves, não se trata de invasão de domicílio ou furto; por pouco, essa discussão nem aconteceria: bastaria que a intentona tivesse dado certo”.
Os crimes afrontam o Estado Democrático de Direito e não são passíveis de perdão, possibilitando que o STF seja levado a declarar a inconstitucionalidade da lei que conceda a anistia aos responsáveis, no caso da sua aprovação no Congresso Nacional.
Como dissemos no início da nossa reflexão, dentro de poucos dias teremos o veredito da Corte Suprema sobre os responsáveis pela tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito e a possível condenação de Bolsonaro e os seus cúmplices de alto coturno.
No dia de hoje, 7 de setembro, celebrar a independência do Brasil e enaltecer a novidade de colocarmos pela primeira vez no banco dos réus generais criminosos não significa que possamos deitar em berço esplêndido, pois o golpismo não se extingue com a prisão de Bolsonaro e seus generais amestrados.
A luta continua.