Algumas reflexões sobre os desafios para a democracia, as políticas de memória, verdade e justiça em tempos neoliberais e neofascistas
*João Ricardo Dornelles
É possível que os mecanismos da justiça de transição, a memória, verdade e justiça, possam garantir a reparação efetiva em relação às vítimas?
O atual momento histórico pode ser definido como um interregno, um lapso de tempo aparentemente vazio onde existe uma situação de crise que abre espaço para um acirrado conflito entre dois blocos históricos que passam a polarizar o cenário político. Fica evidente a referência às reflexões realizadas por Antonio Gramsci há cem anos atrás sobre a ascensão do fascismo na Itália em uma conjuntura de derrota da revolução, de crise social, de crise dos liberais e de intensa polarização política.
O interregno do atual momento histórico revela uma crise de hegemonia que não se limita a uma ou outra sociedade, mas atinge a todas as sociedades e as relações internacionais. Uma crise de hegemonia multifacetada, global, que demonstra a falência e incumprimento das promessas da democracia liberal, atingindo todas as dimensões da vida nas sociedades contemporâneas.
O conflito existente no cenário da crise atual, além de colocar em cheque os direitos da democracia liberal e as conquistas de proteção do Estado de bem-estar social e do socialismo, abre espaço para o desenvolvimento das forças neofascistas. Voltamos à Gramsci para lembrar que a crise dos anos de 1920 manifestava a existência de um interregno, do lusco-fusco onde o velho está em agonia, mas não sucumbe, e o novo está presente mais não tem força para se impor, oportunidade onde aparecem os monstros. No caso daquele momento histórico significou o surgimento e a chegada do fascismo ao poder na Itália.
A ideia de interregno como um intervalo levaria à conclusão, com certeza falsa, de que haveria uma normalidade a ser reconquistada.
Mas será isso mesmo?
Que normalidade seria essa? Das sociedades capitalistas? Do capitalismo neoliberal? Da concentração de riqueza? De um Estado Democrático de Direito liberal que, muitas vezes, assume a feição de um verdadeiro Estado Autoritário de Direito? Do domínio do Ocidente atlantista sobre o mundo todo? Da hegemonia global estadunidense em um mundo unipolar? Da exclusão e empobrecimento de um número cada vez maior de pessoas pelo mundo afora? Do racismo, da misoginia e da xenofobia? Dos genocídios justificados e televisados em cores? Do esgotamento ambiental? Da exploração e das opressões? Enfim, são muitas dúvidas sobre o que significaria essa pretensa normalidade a se retornar.
Para o pensamento crítico, como do ponto de vista das lutas emancipatórias dos povos, das classes populares exploradas e do conjunto de pessoas e grupos humanos oprimidos, não se trata de buscar a saída com a volta para a referência de normalidade do passado, que é justamente a fonte de todas as injustiças, violências, opressões, explorações e destruições. Ao contrário, trata-se de enfrentar um desafio duplo para construir os meios de superação de uma ordem social injusta: a). combater o neoconservadorismo e as suas expressões neofascistas; b). combater o neoliberalismo e acumular forças para construir as condições de rompimento com o capitalismo, entendido como modelo de normalidade.
Ou será que este modelo apresentado como a “normalidade anterior à crise” já não foi devidamente exposto nos últimos dois séculos? Desde Marx, Engels, Lenin, Rosa de Luxemburgo, Gramsci, passando pela tradição frankfurtiana de Horkheimer, Adorno e Benjamin, a tal “normalidade” tem sido desnudada e denunciada como a origem das barbáries de um progresso propagandeado como a utopia alcançável por todas as sociedades e todos os seres humanos.
Cem anos depois vivemos outro momento histórico, com outras características, outros desafios e maiores complexidades. Mas podemos ver alguns paralelismos entre estas duas conjunturas históricas.
Nos deparamos com uma profunda crise geral, que atinge as dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais, criando novos monstros.
Os antecedentes imediatos sobre a crise atual levam-nos ao ano de 2008 e ao momento de depressão econômica do capitalismo global. Em diferentes partes do mundo, uma das consequências foi que a crise do capitalismo abriu caminho para experiências pós-democráticas (Dardot e Laval, 2016), muitas delas com características fascizantes. Como há cem anos atrás, estamos vivendo uma nova “época de fascismos” ou, no caso contemporâneo de neofascismos.
É partindo deste cenário que podemos tentar buscar respostas para saber se o novo contexto neoconservador impacta negativamente as conquistas em termos de Justiça de Transição.
Mas também poderíamos inverter o sentido da pergunta tentando saber se, apesar do ascenso dos neofascismos, as conquistas anteriores dos processos de Justiça de Transição foram e ainda são importantes e suficientes para erguer barreiras de proteção e diminuir os impactos destruidores da onda neoconservadora. Ainda não é possível saber até que ponto os instrumentos da Justiça de Transição servem como um antídoto decisivo para bloquear a repetição de cenários políticos autoritários que levaram às graves violações de direitos humanos.
Existe um consenso sobre o sucesso das conquistas da Justiça de Transição na Argentina, onde as violências da ditadura militar foram reveladas, os responsáveis punidos, foram implementadas políticas públicas de memória, programas de educação para os direitos humanos, políticas públicas de reparação e justiça para as vítimas, construção de memoriais, museus e locais de documentação sobre os horrores do estado de exceção etc. Com todas estas conquistas em termos de Justiça de Transição, como foi possível a eleição de Javier Milei, um neofascista, negacionista em relação aos 30 mil desaparecidos, aos voos da morte e a barbárie ocorrida durante a ditadura militar? Alguma coisa falhou? Ou devemos ser mais cautelosos? Devemos afirmar a importância dos mecanismos da Justiça de Transição, para que “nunca mais aconteça”, mas fazendo a ressalva de que podem existir situações ou conjunturas de crise específicas onde se encontra limitada a capacidade de contenção das práticas sociais e políticas retrógradas e reacionárias?
Só o tempo poderá dizer o potencial real de resistência das conquistas na Argentina sobre o direito à verdade, à memória, à justiça e sobre a capacidade de contenção dos processos de repetição das violações de direitos humanos em um momento de profunda crise de hegemonia nacional e global.
A dúvida é saber se as conquistas em termos de justiça de transição podem se fragilizar em conjunturas de crise de hegemonia e intensa polarização política, quando reaparecem as ameaças reais de estados de exceção.
No cenário de crise de hegemonia e de profunda crise social e econômica, estamos assistindo a emergência de forças de extrema-direita por todas as partes do mundo. Forças políticas neofascistas que se articulam não apenas nos cenários nacionais, mas que se organizam em uma verdadeira Internacional Reacionária.
No caso do Brasil a vitória da frente ampla que se formou em torno do Presidente Lula tem características de luta antifascista pelas liberdades democráticas, de reconstrução de direitos e de retomada das políticas públicas de natureza social e de garantia de direitos.
Ao contrário da Argentina, o Brasil, como possivelmente a Espanha, teve uma transição democrática inconclusa, com uma série de limitações para a implementação dos processos de justiça de transição. Prevaleceu o legado histórico do jeitinho, da conciliação, do pacto “por cima”, do pacto de elites. Voltamos a dialogar com Gramsci, com o seu conceito de Revolução Passiva.
Depois de vinte e um anos de ditadura militar, a longa e arrastada transição democrática brasileira foi resultado de um “pacto por cima”, de uma lei de anistia absolvendo os crimes contra a humanidade dos ditadores militares, de uma conciliação expressa na política de esquecimento e, mais uma vez, no “virar a página suja do passado e seguir em frente”.
O silenciamento e o esquecimento das graves violações de direitos humanos, das injustiças e violências do passado, criam marcas traumáticas recalcadas pela ocultação da verdade. O recalque dos traumas do passado, através do apagamento da história das violências ocorridas e do silenciamento das vozes das vítimas, leva aos processos de repetição e a produção de novas vítimas, muitas vezes em escala maior.
Assim, depois de quase três décadas de uma relativa estabilidade do pacto democrático inconcluso, em 2016 o Brasil viveu um novo golpe, um golpe neoliberal que rompeu parcialmente (ou, pelo menos, flexibilizou) a institucionalidade democrática da Constituição de 1988, dando início à retrocessos nunca imaginados no âmbito dos direitos sociais, da soberania nacional, do desenvolvimento econômico, abrindo caminho para a prisão de Lula e a ascensão de diferentes vertentes da extrema-direita. Aqui estou me referindo ao lavajatismo e ao bolsonarismo (Sérgio Moro, Jair Bolsonaro e os seus comparsas).
Por trás de todo esse processo estavam sempre os agentes políticos, econômicos, culturais do grande capital brasileiro articulado ao capital financeiro internacional e sob controle do bloco liderado pelos Estados Unidos. Só para lembrar quem são estes agentes: as famílias da grande mídia corporativa oligáquica (Globo; Folha; Estadão; Band; Veja etc); a chamada “Faria Lima”, expressão máxima do capitalismo financeiro articulado aos interesses do capital internacional do Ocidente Coletivo (o eixo USA-Europa-Japão); o capitalismo do agro-negócio; a teologia da riqueza ou da prosperidade de grande parte dos pastores evangélicos; parte significativa das forças armadas e das corporações policiais. Quase ia esquecendo do “povo”, as chamadas classes médias, os “cidadãos de bem” e uma massa empobrecida de trabalhadores precarizados, desinformados pela teologia do domínio dos templos cristãos, evangélicos neopentecostais, por setores reacionários da igreja católica e pelos meios de comunicação hegemônicos.
O caminho aberto para Bolsonaro e o neofascismo teve a contribuição decisiva de todos os agentes descritos acima. Onde estavam a Globo, Estadão, Folha, militares, burguesia brasileira, classes médias etc no dia 31 de março de 1964? Ou no mensalão, ou na lava-jato? Onde estavam nos ataques da guerra híbrida contra o governo Dilma em 2013, 2014 e 2015 e no golpe de 2016? Onde estavam no momento do julgamento e prisão do Lula? Depois de conseguirem a prisão de Lula, onde estavam em 2018 na “escolha difícil” entre Haddad e Bolsonaro? Pois é, estavam na cabeça da conspiração, estavam na organização, financiamento e preparação do golpe, tramando contra a democracia, abrindo caminho para a extrema-direita e a barbárie. E onde estão hoje? Como sempre, conspirando e minando o governo Lula e preparando o terreno para a verdadeira guerra que se anuncia nas eleições de 2026.
O neofascismo brasileiro é filho deste bloco conservador e reacionário. E jamais podemos esquecer isso. Nunca esquecer, para que nunca mais aconteça.
A disputa das chamadas narrativas, expressão da moda, está acirrada há menos de uma no das eleições de 2026 no Brasil.
Algo semelhante estamos vendo acontecer em outras partes da América Latina e pelo mundo afora, com a guerra na Ucrânia; a escalada militar; o genocídio em Gaza e a limpeza étnica na Cisjordânia, perpetrado pelo nazi-sionismo, o cão raivoso do imperialismo; pelas ameaças de intervenção do império decadente na Venezuela, Colômbia, México e toda a América Latina, incluindo o Brasil, sob o falso pretexto de guerra contra os narco-governos, os narco-terroristas e os narco-ativistas.
As forças neofascistas avançam pela Europa, Américas, pelo mundo todo. Trump transforma os Estados Unidos em uma verdaeira ditadura, com intervenções da guarda nacional em cidades democratas, com tanques desfilando pelas ruas estadunidenses, com agentes policiais do ICE, uma verdadeira Gestapo, prendendo pessoas nas ruas, locais de trabalho, igrejas, escolas, separando crianças pequenas dos seus pais, usando violência das ditaduras policiais. Ao mesmo tempo, juntamente com a não-mais civilizada Europa, ameaçando incendiar o mundo. Juntam-se ao Trump, Netanyahu, família Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Cláudio Castro, Javier Milei, figuras repugnantes como Santiago Abascal, André Ventura, Giorgia Meloni, Marine Le Pen e Jordan Bardella (França), gente saindo dos esgotos para a luz do dia e cada vez mais arregimentando seguidores.
O quadro de polarização e de crise de hegemonia continua presente. Continuamos vivendo em tempos sombrios, apesar das lutas anticapitalistas, antifascistas, anticoloniais, anti-imperialistas, antirracistas e antipatriarcais se desenvolvendo por todas as partes do mundo, da luta do povo palestino e da denúncia internacional das barbáries perpetradas pelo Estado de Israel, dos levantes de trabalhadores nos países centrais, como França, Reino Unido e Estados Unidos, dos levantes populares em países da África Ocidental, das lutas populares por todas as partes do mundo.
Seguimos lutando contra a barbárie do capitalismo neoliberal e os estados de exceção com seus diversos tons de fascismo.
“A memória permite manter viva e vigente a injustiça passada até o ponto em que, sem essa recordação, o passado deixa de ser e a injustiça se dissolve” (MATE, 2011. p. 29), prevalecendo o esquecimento, a invisibilidade das vítimas e a história oficial dos vencedores.
Enfim, voltamos ao ponto de partida e à pergunta inicial. É possível que os mecanismos da justiça de transição, a memória, verdade e justiça, possam garantir a reparação efetiva em relação às vítimas? Como também é possível garantir que prevaleça o imperativo categórico adorniano, o “Nunca Mais”, através da não repetição das violações de direitos humanos e da produção de novas vítimas? A resposta para tais perguntas não pode ser respondida de forma positiva sem levar em conta as referências da luta política e da correlação de forças entre os blocos históricos centrais, do conjunto dos opressores e exploradores de um lado e, de outro, das grandes maiorias exploradas e oprimidas.
Portanto, apesar da importância estratégica das políticas de memória, verdade, justiça, reparação e não-repetição, através dos mecanismos de justiça transicional, a permanência e o aumento das injustiças e desigualdades características das sociedades divididas entre opressores e oprimidos cria as condições das crises de hegemonia e dos retrocessos com o ressurgimento das práticas de exceção e da barbárie.
Uma lição antiga, que nos remete às reflexões de Pachukanis, Gramsci, Horkheimer, Benjamin, Poulantzas, entre outros, é que não se pode derrotar consequentemente contra as diferentes versões do neofascismo sem superar o capitalismo. Não se supera o sistema de exploração e opressão capitalista e o seu raivoso cão de guarda fascista através dos mecanismos da justiça de transição. A justiça transicional pode ser um instrumento importante na luta para a conquista e consolidação de espaços de liberdades democráticas, como um passo importante que pode criar condições favoráveis para romper com as condições da desigualdade social. Ou seja, sem luta de classes o antídoto da justiça de transição torna-se limitado.
Os fascismos e neofascismos odeiam a verdade, a memória, a justiça, os oprimidos, os explorados e a inteligência.
(*) Professor do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Membro do Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina; Membro do Coletivo Fernando Santa Cruz; Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Rio de Janeiro, 28 de novembro de 2025.
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
MATE, Reyes. Meia-noite na História. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2011.
ROSAS, Fernando. Salazar o os Fascismos. Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2019.
